AUTOR | : ANDRE OSMAR DELLER |
ADVOGADO(A) | : VANESSA APARECIDA KUJA (OAB SC048214) |
ADVOGADO(A) | : CAMILA SAMPAIO ERZINGER (OAB SC044912) |
RÉU | : PORTO SEGURO COMPANHIA DE SEGUROS GERAIS |
ADVOGADO(A) | : JAIME OLIVEIRA PENTEADO (OAB SC017282) |
ADVOGADO(A) | : GERSON VANZIN MOURA DA SILVA (OAB SC009603) |
DESPACHO/DECISÃO
Vistos para decisão,
Analisando os autos, infiro que a parte requerida arguiu em sua resposta questões processuais que se amoldam àquelas previstas no art. 337 do Código de Processo Civil. Ademais, a complexidade da matéria fática exige a organização da fase instrutória.
Dessa forma, na forma do art. 357 do mesmo Diploma, passo ao saneamento e à organização do processo.
I - DAS PRELIMINARES
I.1 - Da Ilegitimidade Passiva e da Falta de Interesse Processual (art. 337, XI, do CPC)
A parte ré sustenta, em sede de preliminar, sua ilegitimidade para figurar no polo passivo da demanda, bem como a ausência de interesse processual do autor.
Fundamenta sua tese na alegação de que, na data do sinistro informada pelo autor (18/12/2023), não existia contrato de seguro vigente entre as partes.
Aponta que a apólice anterior (n. 16.1391.5318685) foi cancelada em 05/04/2023 por inadimplemento, e a nova apólice (n. 16.1391.6014477) somente iniciou sua vigência em 20/12/2023, ou seja, dois dias após o evento.
O autor, em réplica, contrapõe o argumento, afirmando que sempre realizou os pagamentos em dia e que a seguradora, ao continuar a emitir boletos de cobrança mesmo após o suposto cancelamento, agiu de má-fé e criou a legítima expectativa de que a cobertura securitária se mantinha hígida, o que atrairia a aplicação da teoria da surrectio.
A análise da existência, validade e eficácia do contrato de seguro na data do evento danoso constitui o próprio mérito da demanda. As preliminares de ilegitimidade passiva e falta de interesse processual, no caso em tela, confundem-se com a questão de fundo, qual seja, definir se havia ou não cobertura securitária para o sinistro narrado.
Consoante a teoria da asserção, adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, as condições da ação, dentre elas a legitimidade das partes e o interesse processual, devem ser aferidas in status assertionis, ou seja, com base nas alegações formuladas pelo autor na petição inicial. Havendo a necessidade de produção probatória para se constatar a veracidade de tais alegações, a questão deixa de ser processual e passa a ser de mérito.
No caso, o autor alega ser titular de um direito decorrente de um contrato de seguro mantido com a ré, o que é suficiente para, em uma análise prefacial, estabelecer a pertinência subjetiva da lide. A verificação da efetiva vigência da apólice na data do sinistro é matéria que exige aprofundada análise dos fatos e das provas, sendo, portanto, o cerne do mérito.
Assim, rejeito as preliminares de ilegitimidade passiva e de falta de interesse processual.
I.2 - Da Inépcia da Petição Inicial (art. 337, IV, do CPC)
A seguradora requerida argui, ainda, a inépcia da petição inicial, sob o argumento de que o autor não juntou aos autos documentos indispensáveis à propositura da ação, como a apólice vigente na data do sinistro e o laudo médico que ateste a invalidez decorrente de "acidente pessoal".
A petição inicial, para ser considerada apta, deve preencher os requisitos dos arts. 319 e 320 do Código de Processo Civil, permitindo à parte contrária a compreensão da lide e o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa.
No presente caso, a exordial descreve de forma clara a causa de pedir (contrato de seguro e negativa de cobertura para invalidez por cegueira) e os pedidos (pagamento da indenização), estando instruída com os documentos que o autor possuía, notadamente as apólices, os comprovantes de pagamento e a comunicação de negativa da seguradora. Tais elementos foram suficientes para que a ré apresentasse defesa pormenorizada, impugnando especificamente os fatos e o direito alegado.
A questão sobre se os documentos apresentados são ou não suficientes para comprovar o direito do autor é matéria de mérito e será analisada em momento oportuno. A ausência de um documento que, no entendimento da ré, seja "indispensável", não torna a petição inepta se os fatos e fundamentos jurídicos estão claramente expostos, como ocorre no caso em tela.
Dessa forma, rejeito a preliminar de inépcia da inicial.
I.3 - Da Impugnação ao Benefício da Gratuidade de Justiça (art. 337, XIII, do Código de Processo Civil)
A parte ré impugna a concessão do benefício da gratuidade de justiça, alegando que o autor não comprovou sua condição de hipossuficiência.
O autor, por sua vez, instruiu a inicial com o Histórico de Créditos do INSS (Evento 1, CHEQ4), o qual demonstra que sua única fonte de renda é um benefício de auxílio-acidente no valor de R$ 706,00 (setecentos e seis reais) mensais.
A declaração de hipossuficiência firmada pela parte goza de presunção relativa de veracidade, a qual pode ser afastada por prova em contrário. No caso, o documento apresentado pelo autor corrobora sua alegação de insuficiência de recursos, enquanto a impugnação da ré se mostra genérica, desprovida de qualquer elemento concreto que infirme a condição de hipossuficiência do demandante.
Diante do exposto, rejeito a impugnação e mantenho o benefício da gratuidade de justiça concedido ao autor.
II - DOS PONTOS CONTROVERTIDOS
Superadas as questões processuais, fixo como pontos controvertidos, sobre os quais recairá a produção de provas:
II.1 - A existência, validade e vigência de contrato de seguro entre as partes na data de 18/12/2023, considerando-se (a) o alegado cancelamento da apólice nº 16.1391.5318685 por inadimplemento; (b) o início de vigência da apólice nº 16.1391.6014477 apenas em 20/12/2023; e (c) a alegação do autor de que a continuidade da cobrança e dos pagamentos mensais manteria a relação contratual hígida.
II.2 - A natureza da invalidez do autor, a fim de verificar se a cegueira decorreu de "acidente pessoal", coberto pela apólice, ou de doença/condição preexistente (tumor), o que configuraria risco excluído.
II.3 - A ocorrência de boa-fé por parte do autor na contratação da nova apólice, especificamente quanto à suposta omissão de diagnóstico e tratamento cirúrgico prévios à assinatura da Declaração Pessoal de Saúde.
II.4 - Caso se reconheça o dever de indenizar, a extensão da invalidez (parcial ou total) e o valor devido a título de indenização, conforme as tabelas e os limites previstos no contrato.
III - DO ÔNUS DA PROVA
A relação jurídica entre as partes é de consumo, nos termos dos arts. 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor, figurando o autor como destinatário final do serviço (seguro) e a ré como fornecedora.
Presentes a verossimilhança das alegações do autor, que demonstrou uma longa relação contratual com a seguradora, e sua hipossuficiência técnica e informacional frente à companhia de seguros, defiro o pedido de inversão do ônus da prova, com fundamento no art. 6º, VIII, do CDC.
Assim, a distribuição do ônus probatório observará o seguinte:
a) Caberá à parte ré provar: (i) a regularidade do cancelamento da apólice anterior, especialmente a prévia e inequívoca notificação do segurado para constituição em mora (Ponto II.1); (ii) que a causa da invalidez do autor foi doença preexistente e não "acidente pessoal" nos termos da apólice (Ponto II.2); e (iii) a má-fé do autor na contratação do novo seguro (Ponto II.3).
b) Caberá à parte autora comprovar a extensão de sua invalidez e os danos dela decorrentes, para fins de quantificação de eventual indenização (Ponto II.4), sem prejuízo do dever de colaborar com a instrução processual, apresentando os documentos que estiverem em seu poder.
IV - DA INSTRUÇÃO PROBATÓRIA
Considerando a complexidade dos pontos controvertidos, a causa não comporta julgamento antecipado, sendo necessária a dilação probatória.
IV.1 - Da Prova Pericial Médica
Ambas as partes requerem a produção de prova pericial médica, a qual se mostra imprescindível para o deslinde da controvérsia, especialmente para a elucidação dos pontos controvertidos II.2, II.3 e II.4. A perícia é o meio de prova tecnicamente adequado para aferir se a cegueira do autor decorreu de um "acidente pessoal", nos termos da cobertura securitária, ou se é consequência de uma patologia endógena e preexistente.
Assim, DEFIRO a produção de prova pericial médica. Para a realização do ato, nomeio perito do juízo o médico oftalmologista Dr. João Hissa, salientando que o expert "cumprirá escrupulosamente o encargo que lhe foi cometido, independentemente de termo de compromisso" (art. 466, CPC).
Tendo em vista que “na nomeação do perito, o magistrado fixará, desde logo, o prazo para entrega do laudo" (art. 465, CPC), o qual, por motivo justificado, poderá ser prorrogado, uma única vez, por metade do prazo originalmente fixado (art. 476, CPC), fixo o prazo para entrega do laudo em 30 dias.
Em atenção ao § 2º do art. 465 do Código de Processo Civil, o(a) perito(a) ora nomeado(a), no prazo de 15 dias, deverá apresentar: a) proposta de honorários; b) currículo, com comprovação de especialização; c) contatos profissionais, em especial o endereço eletrônico, para onde serão dirigidas as intimações pessoais; d) eventual recusa.
No que tange à recusa, “segundo o art. 467 do Novo CPC, o perito pode escusar-se da tarefa por motivo legítimo (art. 157, caput, do Novo CPC) a escusa deve ser apresentada dentro de 15 dias da intimação ou do impedimento superveniente, prevendo o art. 157, § 1º, do Novo CPC que decorrido esse prazo reputar-se-à ter havido renúncia ao direito de alegar a escusa. Na realidade, o prazo de 15 dias é preclusivo, de forma que decorrido o prazo sem a manifestação do perito não mais poderá este requerer sua dispensa em razão do fenômeno da preclusão temporal.”. (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Editora JusPodivm, 2016, p. 725).
Apresentada a proposta de honorários, conforme §§ 1º e 3º do art. 465 do Código de Processo Civil, deverão as partes serem intimadas para, querendo, manifestarem-se no prazo de 15 dias para: I - arguir o impedimento ou a suspeição do perito, se for o caso; II - indicar assistente técnico; III - apresentar quesitos. Ainda, no mesmo prazo, deverão manifestar-se sobre a proposta de honorários apresentada, sendo que em caso de impugnação, deverão fazê-la de forma fundamentada.
Impugnado o valor por qualquer das partes, intime-se o(a) expert para que se manifeste quanto à possibilidade de alcançar o valor ofertado pelas partes, retornando os autos conclusos em seguida para decisão (art. 465, § 3º, CPC).
Por outro lado, não impugnado o valor dos honorários do(a) expert, deverá ser realizado o depósito do montante dos honorários, consoante determinado abaixo, salientando que em caso de inércia serão imputados os ônus decorrentes da não produção da prova à parte responsável pela produção do subsídio.
No caso em apreço, vê-se que a demanda é submetida às normas consumeristas em que a parte autora é beneficiária da justiça gratuita, de modo que, a teor do disposto da Súmula 26 do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, "nas demandas de competência civil-consumerista, sendo o autor beneficiário da justiça gratuita, deve o réu arcar com o pagamento prévio de metade do valor dos honorários periciais nas hipóteses em que a produção da prova técnica for requerida por ambos os litigantes ou exclusivamente pelo autor, ou, ainda, determinada de ofício pelo juiz".
Depositado o valor dos honorários na forma especificada, comunique-se o perito para dar início aos trabalhos, intimando-se as partes sobre a data e local designados para início da prova pericial, conforme art. 474 do Código de Processo Civil.
Fica deferido, na forma do art. 465, § 4º, do Código de Processo Civil, caso haja requerimento, a liberação de 50% dos honorários em favor do perito antes do início dos trabalhos. O remanescente somente deve ser liberado após apresentação de resposta a eventuais quesitos complementares apresentados pelas partes.
Quanto ao laudo a ser apresentado, deve o(a) expert observar os requisitos dispostos no art. 473 do Código de Processo Civil.
Por fim, apresentado o laudo pericial, as partes terão o prazo de 15 dias para se manifestar, oportunidade em que o assistente técnico, no mesmo prazo, poderá apresentar seu parecer e quesitos complementares. Nessa hipótese, deve-se intimar o(a) perito(a) para que, no prazo de 15 dias, complemente o laudo respondendo aos esclarecimentos solicitados (art. 477 do CPC).
IV.2 - Dos Quesitos do Juízo
Sem prejuízo dos quesitos que serão apresentados pelas partes, fixo os seguintes quesitos a serem respondidos pelo Sr. Perito:
1) Qual o diagnóstico clínico preciso da patologia que acomete o autor e que resultou em sua cegueira?
2) A causa da invalidez do autor (cegueira) decorre de um "acidente pessoal" (evento súbito, externo e violento, causador de lesão física) ou de uma patologia/doença de caráter endógeno (como um tumor, por exemplo)? Favor justificar tecnicamente a resposta.
3) É possível estabelecer, com base nos prontuários médicos, exames e na avaliação clínica do periciando, a data ou o período aproximado do início da patologia que levou à cegueira? O diagnóstico era preexistente à data da cirurgia (18/12/2023) e à data da contratação da nova apólice (20/12/2023)?
4) A invalidez do autor é permanente? Em caso afirmativo, é total ou parcial? Se parcial, qual o percentual de perda da capacidade funcional visual, considerando os parâmetros técnicos e as tabelas usualmente aplicadas em matéria securitária (SUSEP)?
5) A intervenção cirúrgica realizada em 18/12/2023 foi um procedimento para tratamento de uma doença crônica/degenerativa ou foi uma consequência direta e imediata de um trauma/acidente?
6) Deseja o Sr. Perito tecer outros esclarecimentos que julgue pertinentes para o deslinde da causa?
IV.3 - Da Prova Oral
A parte ré postulou pela produção de prova oral, consistente no depoimento pessoal do autor. Neste momento, a análise sobre a pertinência e necessidade da referida prova mostra-se prematura.
Dessa forma, postergo a análise do pedido de produção de prova oral para momento posterior à juntada do laudo pericial. A pertinência e a necessidade da referida prova serão reavaliadas após a apresentação das conclusões do perito, uma vez que o laudo técnico poderá elucidar os pontos controvertidos de forma suficiente a tornar a prova oral dispensável ou, ao contrário, reforçar sua necessidade para o esclarecimento de pontos específicos.
V - DISPOSIÇÕES FINAIS
V.1 - Cumpram-se as determinações do item IV.1.
V.2 - Apresentado o laudo pericial, intimem-se as partes para que se manifestem sobre o seu teor no prazo comum de 15 (quinze) dias, oportunidade em que deverão, querendo, reiterar o interesse na produção de prova oral, justificando sua pertinência à luz das conclusões periciais.
V.3 - Após, voltem os autos conclusos para deliberação sobre o prosseguimento do feito, seja para designação de audiência de instrução e julgamento, seja para anúncio do julgamento da lide no estado em que se encontra.
Intimem-se. Cumpra-se.